quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

NO MODO VIRTUAL ou, A FAKERIZAÇÃO

 
NO MODO VIRTUAL ou, A FAKERIZAÇÃO
por Pietro Nardella-Dellova


Por onde andam os sentidos efetivos e as experiências epiteliais? Por onde andam os risos de doer o abdômen? Por onde andam os debates em que se olha no olho e a exposição não escapa aos limites do encontro, da dialética e da comunhão? Por onde andam os gostos de fazer escorrer suco pelo queixo e mel pelos cantos da boca? E por onde andam as oscilações naturais dos humores e das percepções espontâneas? Por onde andam mulheres e homens reais na era da virtualização?

Trocaram-se os bancos pelas cadeiras sofisticadas (duas vezes sofisticadas em seu sentido etimológico) e os seres humanos se apresentam diante de imagens montadas em qualquer canto. As imagens de criação multifacetada – e sem limites, substituíram a pele e a lágrima, o sorriso e as nuances faciais. Presos, então, ao computer e conectados diuturnamente, homens e mulheres perderam a relação de humanidade e, agora, não têm a capacidade de processar os encontros e suas variáveis, não enxergam e não vêem, sobretudo, não percebem e não atuam. As imagens se oferecem aos milhares, fakes escondem abismos inimagináveis e noctívagos perdem o sono e desmaiam no espasmo, cada vez mais afastados de parte de sua salvação: o “eu”! Exatamente isto: o “eu” é uma parte da salvação - o "tu", a outra!

E porque se perdeu o “eu”, perdeu-se, também, o “tu”: eis o deserto da solidão! As pessoas (reais) estão ficando solitárias, demasiadamente solitárias, e imagens sem dor nem sabor, sem amor nem ódio, vão se reproduzindo aos milhares.

O mundo virtual tornou-se o modelo, o exemplo, a aparência de verniz e, atualmente, define um modo, um “ethos”, ou seja, o “modo virtual” de viver. Os virtuais (ou fakes) juram amor uns pelos outros nos vários meios e sites de relacionamento, mas, sabem mesmo o que é o amar? Sabem transitar sobre a pele do “tu”, sabem quais são as reações plurais de cada poro e o arrepio da penugem? Sabem as diferenças entre um gosto e outro, entre um perfume e outro? Sabem mesmo o que significam pupilas e lábios dilatados? Sabem lidar com as diferentes temperaturas emocionais do outro – este não “tu” – e processar a diferença em termos reais? Chega, então, um tempo de saudade do outro, o inferno de Sartre, que, embora não fosse um “tu”, realizava a grande obra das diferenças, das tensões evolutivas, da dialética produtiva e reprodutiva – o outro fazia avançar!

Agora, nem o “outro” dialético, a quem se podia matar ou diante de quem se morria ou, simplesmente, com quem se construía uma coexistência juridicamente suportável, nem o “tu” dialógico, a quem se podia levar para a cama ou à mesa, com quem se construía uma convivência poeticamente substancial. Nem o “outro” nem o “tu”, apenas o virtualmente deletável – o fakerizado! Mais que isto, ainda, o modo virtual determina uma falsa percepção – a fakerização que resulta, por sua vez, em ações unilateralmente virtuais – o estado de tristeza e esvaziamento!

O esvaziamento da mente fakerizada de quem, conectado durante o dia (e a noite) vai se transformando em nada e perdendo a sensibilidade com o mundo em redor, imaginando projetos absurdamente inexeqüíveis, preparando discursos e aulas de cocô com talquinho perfumado do PowerPoint, buscando respostas inseridas no kaos virtual, jurando paixões à tela e gemendo noite adentro. Tudo isso conduz, invariavelmente, a um comportamento vazio de sentido. Não a um comportamento mau ou bom, por princípio, mas a um comportamento que, vazio ou esvaziado de sentido, resulta em algo apenas mau – o mau, então, por resultado!

E este resultado mau, criado na virtualização do mundo, evolui para um ethos de perversidade e timidez. Ou seja, diante da imagem e da idéia criada e mantida pelos meios virtuais, do esvaziamento de sentidos e perda das relações efetivas, escreve-se o que se quer, produz-se o que se quer, transmite-se o que se quer, diz-se o que se quer, faz-se o que se quer. Mas, no encontro direto e pessoal, o que se escreve não encarna, o que se produz não se concretiza, o que se transmite é irreal e dissociado da experiência humana, o que se diz não se confirma e, por desgraça, o que se faz não se expressa no corpo presente!

É o momento da completa idiotização ou, em outras palavras, o momento do esvaziamento ou da fakerização do mundo, e por mais que se venda outra coisa com aparência de bom, ainda assim, é uma coisa vazia, em um ciclo fake-faker-fake – o falso, o falsificador e este mesmo, o falso!

Va bene, eu desço, avanço e explico um pouco mais!

A relação fake-faker-fake desenvolveu um comportamento feudal de opressão e domínio, com intensa perversidade religiosa, seja pelo desdobramento do pensamento agostiniano ou das variáveis luteranas (no conjunto, uns e outros, são a mesma coisa, criada em Nicéia!). É um modo fakerizado de ver o mundo, ou seja, dualista, maniqueísta e eclesial, cujo atraso e desvirtuamentos exigem dez mil anos de purificação! O “deus” e o “diabo” medievais, bem como, anjos e demônios, santos e santinhas, virgens grávidas e deuses encarnados, resultam do fake-faker-fake! Até aí, nada de mais, exceto pelas mulheres e homens que foram mortos no óleo fervente ou em fogueiras juninas, e pelos seres humanos cortados ao meio, arrastados exemplarmente pelas vias públicas ou, simplesmente, condenados e esquecidos em buracos sob igrejas e castelos. E, mais efetivamente, pela construção nos púlpitos e preces católicas e protestantes, dos fornos que destruíram dez milhões de pessoas sob os coturnos nazistas em campos de concentração, e outros quarenta milhões no front, mas, sempre, com as bênçãos de um grupamento insano!

A relação fake-faker-fake criou, também, o comportamento stalinista (bem distante de suas bases marxistas) desnudado pela Perestróika e, finalmente, implodido. Criou, ainda, e com perversidade excludente, o mundo econômico cocacolizado da bolha financeira – explodido pouco tempo faz, cujo pesado efeito perdurará por décadas.

Assim como nos exemplos expressivos da Idade Média, da Inquisição (ou Inquisições), dos Juízos de “deus” (e do diabo), do Holocausto – situações criadas e desenvolvidas pela visão falsificada de mundo (fake), bem como, do status econômico e financeiro, stalinista e americano, atualmente, vê-se o esvaziamento por conta do mesmo processo de fakerização agravado com o poder da virtualização. Pior que um inimigo real é um fake! Pois, o inimigo é mantido a uma relativa distância, mas o fake não, e, pior, a relação virtual que alimenta os fakes, é incontrolavelmente imperceptível.

Enquanto isso, o mundo vai se transformando em uma grande privada não virtual, em uma lixeira não virtual, em um depósito de seres humanos não virtuais e em um gemido não virtual – tudo em um processo centrífugo em que nada escapa, a não ser que se escute um grito, que se faça um corte e que se acorde depois desta noite!

5 de julho de 2010

© Pietro Nardella-Dellova é Escritor, Poeta e Professor. Coordena Curso de Ciências Jurídicas e Sociais, leciona Direito Civil e Crítica Literária em graduação e pós-graduação. Mestre em Direito pela USP e Mestre em CRe pela PUC/SP. Pós-graduado em Direito Civil e em Literatura. Formado em Direito e em Filosofia. Mestre na Sinagoga Scuola. Membro da UBE – U. B. Escritores. Escreve em várias revistas e jornais. Autor dos livros AMO (89), NO PEITO (89), ADSUM (92), FIO DE ARIADNE (org/texto 94), A PALAVRA COMO CONSTRUÇÃO DO SAGRADO (98), A CRISE SACRIFICIAL DO DIREITO (2001) e, agora, A MORTE DO POETA NOS PENHASCOS E OUTROS MONÓLOGOS. SP: Ed. Scortecci, 2009. Outros textos, contato e informações vejam em seu Blog Café & Direito: http://nardelladellova.blogspot.com/

 

2 comentários:

  1. É uma grande e imensa verdade. Estamos fugindo de relacionamentos, buscando nos anestesiar atráves de um monte de porcaria, sem sentido. Na realidade estamos nos tornando o quê. Seres sem percepção do outro. Ligados num mundo imaginário e unilateral, onde a qualquer momento posso simplesmente deletar o outro sem nenhum peso na consciência, afinal, ele (outro) não existe e apenas uma projeção na tela.
    Todos usando falsas imagens, falsos perfis, negando a si mesmos como seres humanos. Abrindo mão do que mais de bonito existe no ser humano que é a troca fisica, espiritual, amorosa e real. E pessoas vão perdendo sentimentos, tornando-se frias. O verbo amar sendo conjugado sem seu real valor. Afinal amar é comunhão de opostos. Estamos perdendo a inocência e a espontâneidade de ver o belo nas pequenas reais coisas, como estar junto conversandoe rindo de bobagem, apreciando a presença do outro. Agimos como se o outro incomodasse e retirasse nosso tempo de estar online, quando na verdade o momento de estar com o outro é o mais importante. É se relacionando com outro ser humanos que criamos, crescemos, existimos e fazemos o mundo; é nas troca afetivas; é no abraço e carinho entre amigos; é no estar, sentir, tocar a pele e admirar a pessoa amada que nos tranformamos em alguém real e com sentido de vida.

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